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Vila-Escola, Projeto de Gente. Cumuruxatiba, Bahia

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A Vila-Escola Projeto de Gente é um projeto lindo que existe há 13 anos na vila de Cumuruxatiba, Bahia. O espaço atual, rodeado de verde, é uma antiga pousada. Quem nos recebeu foi o educador e um dos idealizados do projeto, Alexandre Cavalcanti. A nossa conversa foi repleta de histórias, contos, poesias, músicas, mitologias e metáforas. Ale é médico homeopata, médico-educador, e acredita que a produção de saúde da homeopatia está em constante diálogo com a educação. Apresenta uma visão holística do cuidado terapêutico e do ambiente educativo e busca construir uma educação rizomática baseada no afeto e no amor.

Nos contou que este projeto sempre foi um sonho. Certa vez, veio a ideia de criar um espaço em que crianças pudessem ir para se livre manifestarem, com argila, giz, tinta, onde tudo seria combinado conjuntamente, e os adultos estariam ali participando e cuidando. Ale desejava criar um campo para estas crianças, um campo sem pedras no caminho, para favorecer a aprendizagem e não para obstruir. Convocou seus amigos, que passaram a se reunir uma vez por semana para pensar o projeto. A proposta foi elaborada por 5 anos, no início dos anos 2000, visando criar este local no Rio de Janeiro. No entanto, por questões práticas de trabalho de cada um, tempo, falta de espaço para alugar, altos preços, não colocaram o projeto em prática.

Um dia, caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, Ale encontrou um amigo que disse que havia um espaço no qual poderiam construir a escola, mas este espaço era em Cumuruxatiba. “Cu o que?” – perguntou. Ele nunca havia ouvido falar sobre o local, não conhecia. Viajou para conhecer e se encantou pelo lugar. Ele e o educador Daniel passaram de maio a agosto de 2007 apresentando o projeto e convidando pessoas para participar. Ele quis criar um espaço diferente da escola tradicional hegemônica: um espaço que pudesse trazer à tona quem as crianças são, suas singularidades.

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O nome Projeto de Gente nasceu nessas bases: Um belo dia, Ale estava almoçando em um restaurante próximo ao seu consultório, quando observou um casal discutindo na mesa ao lado. Em dado momento, um deles disse: “não quero falar sobre essa baixaria, não quero que ele escute”. O outro respondeu: “que besteira! Isso é um projeto de gente, não entende nada do que estamos falando”. Ale olhou e havia uma criança de 3 anos no chão, agachada, desenhando. Seu coração apertou no mesmo momento. Um projeto de gente, um nada, um rascunho em branco. Então ele pensou em colocar esse nome no seu projeto para subverter essa ordem, todo mundo é um projeto de gente, um mistério.

Durante o período de elaborações e conversas profundas, conheceram o trabalho do Rubem Alves – que visitou a Escola da Ponte, em Portugal. Quando ele leu o livro A Escola que Sempre Sonhei Sem Imaginar que Pudesse existir, pensou: Por que não criamos uma escola? O Projeto De Gente faria uma fronteira de tensão com a escola local, mas também fronteira com as famílias. Se criassem uma escola, aos poucos as tensões seriam dissolvidas. No entanto, quando eles chegaram no local, entenderam que haviam 3 escolas da região que eram super importantes para a vila. Escolas tradicionais do município, porém extremamente especiais para aquele lugar.

Assim sendo, pensaram em criar um contra-turno. A ideia era chegar com muito respeito e amor, apresentando esta ideia através dos amigos do Daniel, que frequentava Cumuruxatiba desde criança. Foi uma apresentação feita pela comunidade. Aos poucos, foram construindo uma rede de proteção e apoio. Abriram as inscrições em agosto e 33 crianças ingressaram. Atualmente, o projeto tem cerca de 30 crianças, 8 no turno da manhã e 22 no turno da tarde. Há uma relação de 7/8 crianças para cada educador. A Vila-Escola recebe uma grande variedade de crianças: pataxós, filhos de comerciantes, crianças da aldeia, estudantes de todas as classes sociais: a ideia é que qualquer criança que queira, possa participar.

A Vila-Escola é conhecida por escutar suas crianças. No entanto, também se prepara para lidar com a resistência de muitas famílias diante do grau de desconstrução de suas propostas. Certa vez, menina, aluna da Vila-Escola, de uma família composta por 3 mulheres e 4 homens, questionou o seu pai porque somente as mulheres da casa realizavam os afazeres domésticos. O pai ficou furioso. A menina propôs uma votação entre a família e o pai aceitou: afinal, a maioria era homens. No entanto, os homens perderam a votação, pois dois dos filhos também estudavam na Vila-Escola. No dia seguinte, o pai se apresentou na escola indignado. A escola, que se baseia em atos de acolhimento e amor, recebeu o pai com muito afeto. Posteriormente, este pai virou educador do projeto, se tornando contador de histórias de pescador.

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A “roda” acontece uma vez por semana: é um espaço de debate, decisão, reflexão e questionamento sobre o cotidiano escolar. Todas as crianças participam dessa assembleia juntas. De manhã, há roda também, mas ocorre de acordo com cada circunstância, não há um dia fixo. Na parte da tarde, a roda tem dia e horário, combinações, pautas, etc. Ela tem duração de 2 horas ou de 5 pautas. Todo mês há uma “esfera” que convida todos os pais e mães a participarem. São 7 pautas e só terminam quando todas acabarem. Todas as regras podem ser recombinadas, porém sempre na roda.

Conversamos sobre o lugar da liberdade – um dia, Ale estava observando as crianças correndo  de bicicleta eufóricas, e convocou uma assembleia extraordinária. E disse, em tom sério-brincadeira: Todo mundo aqui! Roda extraordinária agora! O que vocês tão fazendo? Vocês estão fazendo tudo atrapalhado, vamos fazer isso direito! – Então eles criaram uma trilha por dentro da Vila-Escola, pedaços de pau, subindo pela cadeira, saindo pela janela. Foi uma chance para dizer: pode ser de outro jeito, na combinação! Não é para reprimir, é pra organizar. Eu gostaria de ler em silencio, então vamos combinar um jeito para eu poder ler e vocês brincarem de bicicleta?

Como é um dia a dia típico da Vila-Escola? Os portões abrem 13.30h. Até as 14h, ocorre a “perambulação” – conversar, bater papo, jogar xadrez, dama, atividades que reúnem, etc. As 14h começam as atividades. Às segundas-feiras, por exemplo, a atividade é a roda. As 15.30h acontece o lanche e, em seguida, atividade livre. Isso tudo foi combinado, não foi uma ideia imposta pelos adultos. Às terças feiras, a atividade das 14h é a de “projetos de saber coletivos”. No início do ano, todos se reúnem e fazem uma tempestade cerebral: o que queremos aprender? É possível convocar quantas ideias quiserem, das mais variadas. Costumam aparecer 30, 35 interesses. Então há uma votação, formando um quadro dos mais votados. Dependendo da quantidade de educadores (normalmente são 4 por ano), criam-se 4 projetos de saber coletivo e as crianças se dividem de acordo com seus interesses. O educador está ali para dar sustentação, não com a intenção de chegar sabendo. O projeto de culinária, por exemplo, dura há 6 anos. Outros exemplos de projetos são: Projeto Piratas – eles aprenderam diversos assuntos de geografia, história, etc. Projeto futebol – fizeram um campo de futebol e estudaram geometria, matemática, física, etc.

 

Também há os “Projetos de saberes individuais” – cada um escolhe um tema para aprender. A criança irá buscar conhecimento sobre o assunto, também com um educador para dar suporte. Esses projetos não têm prazo, variam de acordo com o desenvolvimento da pesquisa. Se o tema se tornar chato, eles podem mudar. A escola possui um banco de mestres: se algum adulto sabe sobre fotografia, por exemplo, ele entra no banco de mestres. Se um dia houver alguma dúvida a respeito deste tema, as crianças olham o banco e convocam esse adulto (ou da vila, ou convidam alguém de fora).  

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De manhã, ocorre o contra turno dos pequenos, mas também o grupo de teatro TERRAL (vento que bate da terra pro mar bem cedinho e leva os pescadores para o mar) ou Território de Aprendizagem Livre. As crianças do contra turno da tarde, em dado momento do ano, estudam a tarde, então solicitaram que houvessem atividades pela manhã na Vila-Escola. A proposta inicial era ir para fazer o que quisessem, não havia nada preconcebido. Alguns projetos se organizavam, outros não, uns viam para dormir, usar internet, conversar. Quando o educador Edson chegou, ele propôs esse potente espaço de teatro.

A Vila-Escola é um espaço é libertário: é uma experiência, pois todo dia ocorre uma estrutura nova, não tem a ver com errar e acertar, e sim com experimentar. Uma experiência que se renova a cada dia. Experiência de um espaço de aprendizagem democrático, pois tudo se resolve na roda. É uma experiência libertaria, de criação de um campo organizacional (David Bodela, teoria da biossíntese). Esse campo é o útero, um campo que se organiza para acolher o humano e deixar ele se desenvolver.  A Vila-Escola então é um campo organizacional, para os educadores e para as crianças, para os “educadores adultos e os educadores crianças”. Todos são educadores.

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Atualmente, alguns educadores acham que o trabalho deles é esse e não buscam se formalizar em um sistema escolar. Outros acreditam que o baque que as crianças têm ao migrar de um sistema tradicional para o sistema libertário ao longo de seu dia é muito duro, e gostariam de ser formais para lidar com esta vivencia segregada. A proposta seria virar uma escola regular, mas mantendo o lugar de contra turno também.  Ale, ao pensar sobre “ O que eu faço com o que eu aprendi na Vila-Escola?” pensa em ter uma vivencia da Vila-Escola em um nível de sociedade, de comunidade, em uma terra, plantando o que puder, trocando, de portas abertas. Criar estruturas de restauração dos lugares afetivos.  

Vale frisar que, sendo contraturno, a Vila-Escola se depara com diversos obstáculos, dentre eles, a necessidade das crianças de trabalhar no contra turno para ajudar as famílias, estudar para provas finais, a demanda das meninas mais velhas de cuidarem dos irmãos menores em casa, etc. Um dia, começaram a questionar porque havia mais meninos do que meninas. Ficou evidente a estrutura patriarcal que convoca as meninas a cuidarem dos afazeres domésticos. Diante disso, eles criaram uma “cota” para meninas: nos meses seguintes ingressaram na escola somente meninas, apesar da lista de espera. No mais, a Vila-Escola é gratuita e funciona através de doações, colaborações e parcerias. Todos os que trabalham na Vila-Escola ganham igual: professores, manutenção, jardinagem, etc. Por fim, parabenizo os educadores Alexandre, Paty, Luiza, Juliana, Sara, Edson e André, que constroem junto com as crianças essa experiência que transborda amor e afeto.

Mais informações: 

http://www.vila-escolaprojetodegente.com.br/

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